Obras de Ficção

Teatro Lixo (Livro)

TEATRO LIXO

‘‘FEBRIL CLARÃO DA CONSCIÊNCIA’’
O teatro gaúcho navegava por águas mais ou menos plácidas, embora à margem ondas novas se formassem. Estávamos em 1978, época em que o dedo do Exército sempre aparecia quando a questão era cultura, uma zona perigosa para as ideologias sem muito jogo de cintura. Surgia então um grupo: Ói Nóis Aqui Traveiz, capitaneado por Paulo Flores e Julio Zanotta.

Zanotta contribuiu decisivamente nesse período com seus textos delirantes. Foram 4 peças onde o irracional, a violência, o desespero e o incômodo convívio com o febril clarão da consciência explodiram no palco de forma inédita. Depois de Qorpo Santo o Rio Grande do Sul nada tinha visto de parecido.

Teatro Lixo, uma edição da Mercado Aberto, marcada pelo talento gráfico de Marco Cena, é o resgate __ esta palavra tão velha mas cabível __ daquela experiência extrema. A crítica da época não poupou espantos __ e elogios. Claudio Hemann, talvez o crítico mais percuciente da área no estado, escreveu: “à maneira de Samuel Becket, Julio Zanotta produz anfiteatro ou metateatro. Uma girândola de figuras e situações metaforizadas”. Becket, heim!

No volume, cujo projeto gráfico arrojado acompanha a dinâmica fragmentária dos textos, encontramos as 4 peças que Zanotta escreveu entre 1977 e 1979 na íntegra (“A Divina Proporção”, “A Felicidade Não Esperneia, Patati-Patatá”, “A Libertação do Diretor-Presidente” e “As Cinzas do General”, peça cuja encenação foi interrompida violentamente pelos órgãos de repressão e o autor foi forçado a deixar o país.) A fortuna crítica que deu estatuto de legitimidade da melhor dramaturgia a este teatro em briga com o próprio teatro também comparece. Às análises clarividentes de Heemann somam-se as procedentes de Antônio Hohfeldt, Aldo Obino e Tânia Faillace. De tais vozes emana um coro que anuncia “propósitos devastadores”, “espetáculo cru e raivoso”, “ironia violenta (…) que não deixa pedra sobre pedra”, ou “mosaico de inquietação”. Outras expressões igualmente admirativas poderiam ser citadas.

Libelo em cima do problema habitacional brasileiro, “A Divina Proporção” busca, através de quatro personagens que se movimentam em meio a lixos e escombros, traçar um perfil do ruinoso sistema de habitação no país. Em “A Felicidade Não Esperneia-Patati-Patatá” a medicina é o pano de fundo. Igualmente o cenário, semelhante à peça anterior, procura no lixo, nos escombros, no arame farpado a sua atmosfera (Becket, um mundo em dissolução, etc.). O médico aí não é a outra face do monstro, é o monstro mesmo.

Com “A Libertação do Diretor-Presidente” fica bem claro que o teatro de Zanotta, pouco verbal, é essencialmente cênico, funciona em movimento, utilizando-se do corpo dos atores, do cenário e da ocupação do espaço no palco (qualquer palco, aliás, “garagem, porão, apartamento, igreja, escola, palacete, praça, ou no meio do lixo”), rendendo na voz muda do leitor __folheando um volume chamado Teatro Lixo __ o prazer moderado de uma simples reconstituição ou de uma curiosidade apenas satisfeita. A última peça, “As Cinzas do General”, é mais atual do que nunca __ hoje os ditadores voltaram e estão com a bola toda __, leva o delírio da contestação a limites imprevistos. Exemplo: o cenário. Os atores saem de uma vagina e há um orelhão com uma pessoa enforcada e estrelas pintadas (da bandeira do Brasil?) e um viaduto sufocando a cidade.

Teatro Lixo é mais para ser encenado do que lido. Mas fora Shakespeare, Tchecov, Pirandello e Nelson Rodrigues, a maioria dos bons dramaturgos recebem este veredito quando publicados em livro. Em síntese: Teatro Lixo é documento.

Texto por: Paulo Bentancur (escritor e crítico literário, autor de “Instruções para Iludir Relógios”, “Os Livros Impossíveis” e “Frio”, entre outros. Falecido em 2018.)

FICHA TÉCNICA:
Texto: Julio Zanotta
Capa e Projeto Gráfico: Marco Cena
Editor: Roque Jacoby
Editora: Mercado Aberto
Lançamento : 05 de novembro de 1996
Páginas: 140
CDU: 347.786(81)

NA IMPRENSA

O Poder do Lixo

Teatro Lixo tem uma vantagem dupla de trazer resumos de um tempo em que era proibido viver fora dos padrões impostos pela truculência. Tempo em que só um teatro com pedra nas veias seria capaz de resistir.

Zero Hora

05 de novembro de 1996
Por Rejane Martins

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